Viva Mãe Preta!
- Alice Nascimento
- 21 de abr. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 23 de mai. de 2020
Em abril de 2020 fez 1 ano que a peça Mãe Preta da Combate Coletivo de Artes Pretas estreou no Quilombo Terça Afro.
Mãe Preta foi a minha primeira experiência de direção. E nasceu de uma parceria com Jhow Carvalho de longa data. Conheci o Jhow na universidade, fizemos o mesmo curso de licenciatura em Arte-Teatro, na mesma turma. Partilhamos muitos momentos e muita história de vida.

O projeto Mãe Preta surgiu primeiro como conto que Jhow escreveu e foi premiado por ele. A premiação e a vida nas artes cênicas levaram o Jhow a começar a interpretar o próprio texto. No início desse processo eu surgi como uma provocadora cênica, alguém que olha o trabalho e fala umas coisas para ele ficar mais bacana. Ou seja, eu dava “pitaco” (risos).
Com a inserção do projeto em editais públicos, o pitaco pode se transformar em direção. Direção é uma experiencia totalmente diferente. Busquei olhar para a equipe (agora não era mais só Jhow e eu) e para as criações que vinham e que propus como uma primeira espectadora. Enxergando as potências para fazer as escolhas daquilo que traria emoção, poesia, empatia e inquietação.
Sobre a peça:
Meia luz. Duas pessoas caminham em variadas velocidades. Um tambor dita o ritmo. Tudo parece indicar que estamos nos preparando para um chamado, um grito. A luz se intensifica. Corte seco do som. A notícia é de que mataram um policial na quebrada.
Estamos diante de uma voz jovem e com revolta que questiona a mídia como parceira do projeto genocida do Estado. Através dessa voz, conhecemos Mãe Preta, que é apresentada assim sem nome porque não se trata de uma mãe, mas sim de várias e várias mães que perdem cotidianamente seus filhos.


Uma única história, a mesma história que se repete com diferentes personagens, são elas: Marias, Solanges, Marlis, Claudias, Josefas e por aí vai. Todas mães pretas, que sofreram por perderem seus filhos sem direito a justiça e ao luto. Uma mãe preta sempre tem muito a fazer, não pode parar para chorar, senão o leite derrama no fogão e nunca estivemos em tempos de poder desperdiçar o leite das outras crianças. Além dos seus outros filhos, Mãe Preta também tem de acolher outras mães pretas. É um ciclo.
A história tem movimento espiralar, aprendemos com Leda Maria Martins. O que aconteceu, retorna a acontecer. E esse movimento de sofrimento das mães vem desde a construção desse país marcado por 400 anos de escravidão, opressão e genocídio dos povos negros e indígenas.
Não é segredo a ninguém, mas é preciso relembrar que ao assinar a lei que coloca fim ao processo de tráfico e escravidão do povo negro no Brasil, não houve nenhuma ação política para que essas pessoas pudessem exercer um papel de cidadania. Não havia casa, não havia trabalho. O fim da escravidão na vida prática não se estabeleceu.
Terras foram concedidas a imigrantes Europeus. Bairros inteiros, vilas industriais. Não havia alternativa ao povo negro a não ser se aglomerar nas periferias em condições, até os dias atuais, precárias.
Não atoa as chacinas, o abuso de poder e a violência acontecem nesses lugares. O projeto de genocídio da população preta continua e tem localização geográfica. O funk que toca nas chamadas “quebradas” é o mesmo que toca nas festas dos universitários de Perdizes (bairro nobre da cidade de São Paulo), mas a chacina não acontece lá.

Essa peça é um grito. Incomoda quem se nega a ver, acorda quem dispersa o olhar, alerta quem não sabe, convoca quem está por perto. E é também uma singela homenagem as nossas mães, todas elas, desde nossas ancestrais. Sabemos de suas dores e nos compromissamos a sermos cada vez mais melhores do que somos porque sabemos que não estamos sozinhas e sozinhos, elas caminham conosco.
Sobre o futuro: Em 2020 Mãe Preta tem uma agenda de circulação prevista para acontecer nos bairros periféricos da cidade de São Paulo e em alguns municípios da região metropolitana. Por enquanto todas as apresentações estão em pausa em virtude das medidas de contenção da propagação da COVID-19. Mas, vocês podem acompanhar a gravação da apresentação feita no espaço da Cia do Pássaro em:
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